quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Perfeição

O dia havia sido agitado para Emily. Muitas tarefas do serviço pareciam intermináveis, quase impossíveis de serem feitas. Mas ela dava ordens sem parar. Era muito competente e tinha que mostrar que, em seu setor, ninguém deixava de cumprir com uma data. Finalmente, por volta das seis e meia, entregaram-lhe o último relatório. Ela leu com aquele ar superior no canto dos olhos, enquanto o funcionário esfregava as mãos apreensivo. Era a quarta vez que ele refazia o mesmo relatório. Ao final, ela sorriu satisfeita e o pobre rapaz respirou aliviado.
- Agora sim, pode ir Sr. Marcos, mas por favor, melhore os seus relatórios para que não precisem ser refeitos tantas vezes. Veja só a hora, hã?! Acabamos ficando os dois atrasados…
O rapaz fez um sim com a cabeça e saiu, um pouco embaraçado pela situação. Emily encostou-se na cadeira, satisfeita. Não havia dúvidas da profissional que era. Todos sabiam do seu potencial e, além disso, era normalmente empolgada e simpática com os funcionários. Mas sabia ser exigente quando preciso. Os empregados estavam muito satisfeitos com ela e tinham prazer em trabalhar melhor dia após dia. Era um setor que inspirava alegria. E Emily era totalmente responsável por isso.
Saiu do escritório por volta das sete. Era o dia em que saia mais tarde, desde quando havia assumido o posto, mas estava satisfeita, não apenas com o seu emprego e com sua posição, mas com sua vida como um todo. Aos quarenta e poucos anos, ela mantinha um padrão de vida invejável. Um salário muito bom, uma casa grande e aconchegante, com uma vasta área verde, os filhos que cresciam saudáveis e educados e o marido que sempre a esperava sorrindo. E Emily era bonita, muito bonita. As mulheres mais novas sempre perguntavam à ela qual era seu segredo de beleza e como ela conseguia se manter tão jovial sempre. Mas não havia segredos, ela dizia. E realmente não havia, embora as demais mulheres não acreditassem. Acontece que ela era uma privilegiada por natureza e, tirando os cuidados básicos com a pele e o cabelo, Emily não precisava de mais esforços para manter-se linda. Ela apenas o era.
Dirigindo para casa, pensava nesses pequenos detalhes que fazia de sua vida tão perfeita. Enquanto suas colegas de trabalho preocupavam-se com os filhos mal-criados, esposos beberrões e rugas no canto dos olhos, Emily tinha que pensar apenas no jardim que estava precisando de cuidados, no pagamento da empregada e na conservação de sua vida exatamente como era. E de todas as suas tarefas, manter sua casa em perfeito estado de harmonia parecia-lhe a mais fácil. Tudo parecia fluir para este ponto. Os filhos eram, naturalmente, bons e amáveis. Inteligentes e belos. Perfeitos. O esposo não bebia, não fumava, não era ciumento em excesso, não era nem ao menos gordo ou calvo. Um verdadeiro mocinho de novela romântica só para ela. E a casa era encantadora. Com um belíssimo jardim, um pequeno pomar, uma piscina aos fundos, dois carros na garagem, uma área para churrasco arejada e redes debaixo das árvores. Além disso, sua casa possuía muito mais do que quartos com suítes e sala de jantar. Tinham uma biblioteca, uma sala de TV e um pequeno salão de jogos junto da garagem. A família perfeita, na casa perfeita. Emily sentia-se quase explodindo de satisfação.
Parou no farol. Sua felicidade extremista deu-lhe um certo incômodo. Mexeu-se no banco, ajeitando o cinto de segurança e reclamou do trânsito, tentando aborrecer-se. Tentou pensar em algum problema, por mínimo que este fosse. Procurou na memória algo que o marido fizera que a deixou triste ou algum aborrecimento com os filhos, mas não conseguia lembrar-se de nada. Até mesmo sua empregada parecia-lhe sorrir feliz e nem mesmo nela, Emily conseguia encontrar um escape. Tornou a cabeça para os lados, tentando distrair-se com a paisagem na rua. O farol tardava em abrir, mas por mais que ela reclamasse disso, não conseguia sentir-se aborrecida. Sua reclamação era apenas o resultado de um enorme esforço que fazia para combater a felicidade suprema que havia tomado conta de si. Pois sua vontade era de pular para fora do carro, de abraçar as pessoas, de gritar para o mundo que ela era a pessoa mais feliz que existia e isso dava-lhe um desconforto cada vez maior.
O farol abriu. Emily acelerou com força. O vidro do carro aberto permitia que o vento tocasse-lhe o rosto com fúria. Ela acelerou mais, tentando chegar em casa o mais rápido possível. Precisava ver seus filhos, seu marido, sua casa em ordem, sua vida perfeita. Sentia um calafrio na espinha e dirigia cada vez mais depressa. Precisava chegar lá, mas porquê? Não sabia. Estava preocupada? Estava anciosa? O que ela queria? Estava realmente feliz? Sim. Sim. Sim. A felicidade escorria por sua face. O trabalho perfeito, os filhos perfeitos, a casa perfeita, o marido perfeito, a vida perfeita e a felicidade perfeita. Emily parou o carro bruscamente. Sentiu o cinto forçar seu corpo contra o banco. Olhou para suas mãos agarradas ao volante. Estavam frias. O corpo todo suava. O rosto estava molhado. Ao redor não haviam carros. Eram oito horas e ela constatou, aflita, que já estava na rua de sua casa. Sua busca humana estava terminada. Atingira o cume. Para onde iria agora? Pela primeira vez em sua vida, ela não sabia o que fazer. Ofegante, tentava desesperadamente encontrar um erro em sua vida, algo que ainda estivesse incompleto, que suas mãos pudessem trabalhar. Mas não havia nada. Uma vida completamente feliz e perfeita. Emily gritou!
Luzes se acenderam nos quintais. Os mais curiosos saíram para ver o que era. Havia apenas um carro parado no meio da rua. E um grito. Profundo, estridente, desesperado. E depois, o silêncio.
- Olhem! É o carro da Dona Emily! O que será que aconteceu?
Os mais curiosos logo notaram que a menina havia observado corretamente. Era o melhor carro da vizinhança e a melhor casa. Era a melhor família. Os mais bem sucedidos, educados e simpáticos da vizinhança. Não poderiam deixar que alguma fatalidade se apoderasse deles. Alguém resolveu que iria até o carro. Seja lá o que fosse, não permitiriam uma maldade com Emily. Alguns decidiram ir junto e logo havia um grupo de cinco ou seis homens, com vassouras e paus nas mãos, avançando em direção ao carro. Surpreenderam-se quando, ao aproximarem, viram que ela estava sozinha, rindo, totalmente relaxada no banco do motorista. Um dos homens aproveitou a janela aberta e tocou no braço dela, chamando-a. Os demais entreolharam-se, sem nada entender. Ela olhou para o lado ainda rindo, mas ao ver o grupo do lado de fora do carro, ficou séria. Todos a olhavam, os homens assustados e os que estavam mais de longe, tentavam entender o que acontecia dentro do carro.
- A senhora está bem? –perguntou o rapaz que a havia tocado.
- Estou ótima! Como nunca estive em toda minha vida. Desculpe tê-lo incomodado...
O rapaz sorriu. Um pouco sem jeito, afastou-se do carro fazendo um sinal para os demais de que estava tudo bem. Emily engatou a ré e afastou-se rapidamente do grupo. Quando chegou na esquina, fez uma curva rápida e seguiu no sentido oposto à sua residência, o mais rápido que pode. Desde então, ninguém mais voltou a vê-la.